segunda-feira, 6 de maio de 2013

A PRÁTICA DA MEDITAÇÃO - MEDITAR SEM MESTRE




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A MEDITAÇÃO É A ÚNICA COISA QUE VALE A PENA 
SE É COM ELA QUE TERMINA O SOFRIMENTO PSICOLÓGICO


Este blogue tem como mero objectivo iniciar  o leitor na prática da meditação, do modo que consideramos mais correcto, menos dificultoso e condizente com os objectivos que aquela prossegue. 

São muitos os que recorrem nas livrarias a obras catalogadas como de auto-ajuda. A maioria apresenta-se de forma arrazoada ou extensa, por vezes verdadeiras fraudes conscientes ou inconscientes, por provirem de espíritos acossados de patologias psíquicas, inviabilizando a sua prática.
Programas rígidos, aceitação dogmática de asserções de mestres, cursos de comunicação com o além ou com Jesus, milagres de encomenda; tudo é possível a troco de dinheiro... Trágico!

Meditar não é cumprir um programa espiritual, não se compadece com retiros, não tem horas marcadas. Não é um procedimento racional que visa atingir uma verdade específica. É atenção global e constante de todas as ocasiões sejam elas quais forem.
Implica solidão, a libertação do conhecido, a extinção da dor, para que o novo, o Desconhecido surja, sem mestres ou orientadores que, tais cegos, pretendem conduzir outros cegos, que o são porquanto não querem ver.
As disciplinas meditacionais são torturantes e como todo o esforço para vir a ser, só produzem mais dor, mais intranquilidade, insatisfação e insegurança.
A actividade ascética, como modo de renúncia e supressão dos nossos instintos e desejos, austeridade forçada pela vontade, é perniciosa, destruindo o espírito, a beleza e o amor.

É pela meditação, pela observação pura e simples, que podemos descobrir o que está para além do pensamento, do espaço-tempo. É o único modo.
Para além de pressupor autoconhecimento, pressupõe também isenção de condicionamentos. A observação do pensamento, de todos os seus subtis movimentos e de tudo o que nos rodeia, sem comparação ou julgamento.
Não implica controlo, mas atenção, que não desvirtua a realidade do que é observado.

Os anos conduziram-nos por um trilho incerto. A cada passo nova direcção e a consciência de que não há caminho.
Isso faz com que da vida não requeiramos nada de especial.
Quero aniquilar o ciúme, o ódio, a agressividade, a impaciência, a inquietude, a inveja, o sentimento de posse, a ilusão, os múltiplos medos.
Quero esvaziar a minha alma de todo o seu conteúdo. Penetrar nas suas profundezas acedendo ao que nela está escondido.
Quero percepcionar a inconsistência dos anseios e apegos e libertar-me de todas as convicções, dogmas e experiências psicológicas passadas.
Quero ficar só, para que em paz e nessa solidão afectuosa possa olhar as estrelas, as nuvens que correm no céu azul, os rostos das crianças e das mulheres, os ribeiros e fontes da montanha, o mar extenso e revolto, os picos da serrania e o poente da minha existência. Quero ver a Realidade tal qual ela é.
Quero amar indiscriminadamente, de forma espontânea e gratuita.
Quero dizer Sim à Vida, apenas isso.
Sou eu que decido se quero ou não ser feliz. Ninguém tem o poder de me fazer feliz ou de o decidir por mim.
Assim, é legitimo terminar com o penar psicológico e com tudo o que não é Amor.

Estamos sós nessa caminhada para algures ou para lado nenhum.
Ser livre é caminhar sozinho, sem fórmulas nem mestres.

O único dom deste texto é a sua fragilidade e possibilidade de ser destruído quando para nada servir. O mesmo dom que tem uma flor, uma erva ou eu mesmo.




Necessitamos de Paz neste mundo bélico e maltratante.
Mas não é só a paz exterior, a que nos isenta de guerras, agressões, fome, ignorância, a dos prémios Nobel ou a apregoada por políticos falaciosos e amorais; é a interior, a própria, que é revolucionária no verdadeiro sentido do termo.
A paz normativa, a que é artificialmente imposta nunca permitirá o apaziguamento seja do que for. Tratados, convenções, desarmamento, aniquilação ou destruição de ditaduras e ditadores, derrube de regimes despóticos, em regra com finalidades que aproveitam aos sujeitos activos, irão gerar a substituição dos passivos por estes, mantendo-se inalterada a situação caótica e cruel de planeta habitado por ambiciosos predadores.
A Paz, manifestar-se-á com todo o seu encanto, beleza e generosidade, sempre que cada um de nós se transforme. Em cada mudança cooperaremos na alteração parcial do todo.
De que servem revoluções sem educação? Qual a utilidade de uma pedagogia da ambição, da corrida ao “ouro” e da sofreguidão de prestígio?
Qual a conveniência e interesse da imposição de regras que nem a paz social se permitem harmonizar?
      
A sociedade transformar-se-á quando cada um de nós se transformar, transformando-se a cada transformação, por ínfima que pareça. E a nossa transformação ocorrerá espontaneamente, quando nos limitarmos a ser o que efectivamente somos, sendo apenas aquilo que somos e tendo plena consciência desse facto.

A mesma consciência deveremos reter de que a impermanência é tudo o que temos.
Na vida impera o acaso.
Precisamos entender o facto de que a segurança não existe e viver com isso, não de forma patológica, mas entusiasmada e livre.
Autoconhecimento e sentimento de impermanência são os nossos primeiros passos.


Meditar é ver, ouvir, sentir, cheirar, saborear as coisas como elas são. Meditar é atenção global, não é concentração, fruto de exercícios mentais obnubiladores e de práticas torturantes.
Ouço o canto dos pássaros, o vento na vegetação, a água corrente, os que me falam, vejo as nuvens no céu, o despontar do Sol, o brilho das pedras humedecidas pelo orvalho da manhã, os rostos dos camponeses. Observo os meus pensamentos e toda a minha consciência descendo até aos mais recônditos e obscuros lugares. Saboreio os frutos e demais alimentos, inalo os mais variados aromas.
Sentir o vento, a chuva e o sol no rosto e nas espáduas, no seio da natureza sem o alvoroço do raciocínio é meditação.
Tudo de uma vez só, de forma total, como a própria vida.
Com esta atenção vigilante, que é sensibilidade à existência, o pensamento silencia-se.

Quando meditamos, a ausência da sucessão de pensamentos libera uma imensa energia explosiva e criadora porque não está alicerçada no passado.
As forças do Universo concentram-se no silêncio quando o pensamento cessa. Uma existência sem causalidade ou propósito, identificando-se com a do próprio Cosmos.
É pela meditação, pela observação pura e simples, que podemos descobrir o que está para além do pensamento, do espaço-tempo. É o único modo.
A razão só tem tornado complexo o que é simples ao amontoar século a século teorias e doutrinas contraditórias e paradoxais.

Se de instante a instante nos estamos a conhecer, observando-nos, surge a sensibilidade, nasce a bondade, sem que tenham importância os erros e culpas do passado. No instante presente não há lugar para o passado, sob pena daquele ser destruído na sua essência. Na observação da mente é fundamental que o passado deixe de existir.
      
Observar o sofrimento, o medo, ou qualquer problema é fazer cessar o pensamento. Quando o pensamento cessa, o “eu” desaparece, deixamos de existir e nesse estado magnífico sem sofrimento passa a existir a Verdade, a Beleza e o Amor.
Só na presença do “eu” há ódio, inveja, ciúme, medo e desejo.
É o pensamento que cria o “eu”. Sem pensamento não há pensador.

Onde houver sofrimento não está a Verdade, a Paz, a Beleza e o Amor.
E apenas a Meditação pode fazer findar o sofrimento.

E meditar é apenas:

Observar o pensamento e o seu movimento, numa vigilância passiva, e tudo o que nos rodeia, sem comparar ou interpretar, em atitude de constante aperfeiçoamento dos sentidos.
“Ser”, sem nada buscar, intensamente, com paixão.



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Necessitamos de observar o pensamento, e de autoconhecimento, que não é aprendizagem. A introspecção, que é análise realizada pelo próprio indivíduo relativamente ao conteúdo da sua consciência, é perniciosa por separar o observador do observado.
Autoconhecimento é caminho para um homem só, com as experiências em si vivenciadas. De nada nos servem as interpretações e teorizações alheias acerca do medo, do amor, do padecimento psicológico. É observação, e esta exclui juízos valorativos ou explicativos.
A meditação começa com o autoconhecimento. Temos de observar todos os nossos pensamentos, emoções, sentimentos. Esta vigilância levará ao silêncio. Neste, o inconsciente projecta sugestões, carências, o que conduz ao conhecimento do indivíduo na sua integralidade.
      
O pensamento tem a sua essência. A essência do pensamento é a ausência dele mesmo, é um não pensar.
Pela observação do pensamento fazemo-lo cessar, e como o pensamento é tempo, este também cessa.
Só na extinção do tempo surge a inocência, o novo. A essência da eternidade é a negação do tempo.
A observação da actividade mental tem de ser imediata, sem dependência espácio-temporal, para que a destruição de tudo o que nos atormenta seja instantânea.

Observação na perspectiva do autoconhecimento implica uma vigilância constante de toda a actividade mental e psicológica perceptível.
É aparentemente difícil “observar” o pensamento e o que nos rodeia. Parecemos estar mais interessados em manter os conflitos, a ilusão e os condicionamentos.
Os problemas têm de ser resolvidos instantaneamente. Perceber um problema é vê-lo em toda a sua extensão sem que o pensamento interfira. Resolvê-lo é dar-lhe atenção imediata. Os mecanismos de defesa psicológica adoptados pelo homem só podem ser destruídos pelo autoconhecimento
Quer a fantasia, quer a imaginação deturpam e inviabilizam a percepção límpida das coisas, que só é possível com a quietude do cérebro. Na ficção há uma representação mental divorciada da realidade.
Estamos condicionados pelas nossas crenças protectoras, ideias, hábitos, anseios, apegos e medos, pelo que necessitamos de um espírito crítico, que é o que está livre de condicionamentos e contradições internas, que é independente e solitário.

Há o conhecimento que não é fruto do pensamento e dos seus múltiplos mecanismos, que brota da pura observação e do deslumbre por esta gerado.

Quando observamos o pensamento e o seu movimento, numa vigilância passiva, sem condenar, justificar, interpretar, sem fugir dele, recalcando-o ou sublimando-o, este tende a parar.
E nesse estado de escuta passiva, se observamos o que nos rodeia, sem a sua contaminação, transcendemos os limites temporais e espaciais, porque só existe o instante, o “agora”.



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Para além da observação precisamos de entender o movimento do pensamento; compreender a sucessão de pensamentos, levar esse entendimento até às suas origens.
Compreender o movimento do pensamento é mergulhar nas profundezas da mente, aniquilando naturalmente os mecanismos de defesa que o impedem. É a mente que se penetra a si mesma.
Há os momentos dedicados ao trabalho e ao estudo, que exigem concentração. De qualquer modo, na medida do possível, devemos estar psicologicamente vigilantes – ao pensamento e ao seu movimento.
Se compreendemos quem somos, levando esta investigação às últimas consequências, despontará a sabedoria e quem sabe o amor, que é sensibilidade e paixão por tudo e por nada.
      
A auto-observação continuada tem de atingir a consciência em todos os seus recantos, permitindo a livre expansão do material inconsciente, possível pela quietude que ocorre quando o pensamento cessa – pela sua própria observação.
O autoconhecimento leva ao apaziguamento da mente, uma paz sem motivo. Quanto mais quieta, mais se manifestam as camadas profundas da consciência, levando à compreensão total do nosso ser.

Para dissiparmos os estados negativos temos de os escutar atentamente no seu todo, sem esforço ou repressão.
Se no instante em que nos encolerizamos, tornamos agressivos, invejosos ou egoístas, percepcionamos o facto de forma total, instantânea e imediata, sem quaisquer reservas, numa mera constatação não valorativa, tais estados dissipam-se, são destruídos.
Por seu turno, ouvir o sofrimento é levá-lo às últimas consequências, deixar que se manifeste na sua totalidade, não cerceando o seu movimento mental próprio, as questões e conclusões a que conduz.

Destruir os condicionamentos não é recalcá-los, sublimá-los, compensá-los. A destruição pressupõe entendimento. Entendimento que decorre da observação contínua e desinteressada, que não emite juízos de valor, comparativos, que se limita à auscultação do que é, levando sem esforço à mudança.



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Se nos libertarmos do pensamento, libertamo-nos de tudo o que nos relativiza, que nos condiciona. E a libertação do pensamento passa pela sua vigilância passiva, momento a momento.
O cérebro necessita de estar sensível. A sua visão não pode de modo algum distorcer a realidade. Se sensível, e com uma vigilância não-interpretativa, ou seja, passiva, observa com clareza e acuidade o mundo interior e exterior.
      
Observando o que somos, não há querer ser e em consequência, não há contenda interior.
A constante vigilância dos nossos pensamentos, estados de ânimo, emoções, sentimentos, é uma forma de apaziguar a mente.
      
Também não podemos terminar com os desejos sem mais, reprimindo-os. Só a escuta passiva os pode fazer cessar.
Há que os escutar e compreender. Vê-los nascer, crescer, sem que os procuremos dominar ou reprimir.
O apego, por sua vez, é desejo firmado ou consolidado.
A família e os bens materiais que possuímos, as crenças e a nossa vida, são os mais perigosos e insistentes apegos.
Purificar o espírito de apegos e aversões conduz à Paz.

Quando há atenção, não há “eu”, nem o outro, não há observador e objecto observado, porque o pensamento se dissipa. Atenção não é concentração, esforço dirigido, que é em regra conflito.
Observamos um milhafre na sua caçada implacável, o voo gracioso de uma ave, o olhar terno de uma criança, a passagem de um comboio na gare, um deslumbrante pôr-do-sol e ficamos apenas com o facto. Compreendemos o que se está a passar imediatamente. Não há pensamento, mas compreendemos. O cérebro está tranquilo, sem tagarelar, pleno de energia e entende sem pensar.
O mesmo se passa com qualquer problema. O entendimento é libertador.

Vou no comboio. Estou atento às sensações corporais, à conversa dos passageiros ao meu lado e ao rumor da fala dos mais afastados, ao ruído das rodas que deslizam nos carris, ao deslocamento do vento. Vejo as hortas, as árvores, os túneis, as casas, as pessoas e seu afã, a névoa que abraça os vales, os animais que pastam. Estou sensível aos balanços e impressões que corporalmente me causam, à alteração dos sons, ao apito, aos múltiplos verdes e ocres, às nuvens escuras no céu, às gotas de chuva na janela. Observo as expressões dos outros viajantes e os meus pensamentos quando surgem.
Que quietude advém de tudo isto.
E quanto maior a atenção, maior a quietude.



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Para além dos momentos que exigem concentração – e são muitos – há que estar vigilante ao que se passa em nós e a tudo o que nos rodeia, em especial à natureza. Estar atento aos pensamentos, às nuvens no céu, às estrelas, aos reflexos do sol nas águas, à montanha, aos rios e regatos, tarefa que se impõe para sempre.
Nesta atitude não há tempo ou oportunidade para prantearmos o passado, que é a origem do que hoje somos. Devemos falecer para a sua lembrança.
Nesta atitude há que negar a sociedade actual porquanto inviabilizadora do pleno acesso à realidade, em virtude de se estruturar no prazer, na ambição e na inveja.

Quando não há “eu”, a realidade é o que é: verdade, beleza, paixão e amor. Quando não somos isto ou aquilo, somos todas as coisas.
Quando se vive na realidade, há paz, não há conflito. O “ser” é o que é, e nessa simples existência não germina a litigância.

Estar atento é estar com o que é, compreendendo a realidade sempre nova, sem recurso ao pensamento. Ver a realidade não depende do tempo; o acto de ver existe apenas no presente.
A atenção diverge da concentração. Nesta, evita-se ou não há dispersão. Contrariamente, a atenção tudo engloba, mesmo a distracção.
Na atenção não há tempo, mas um estado de acção altamente sensível na sua intemporalidade.

Se vivemos na “realidade”, então viceja a paz por contraposição aos conflitos gerados pela ilusão e pela fantasia. Nestas, não há tempo para o eterno agora, mas antes para um passado falecido e um futuro inexistente. O “eterno agora” não é vivenciado como o que passa, mas como algo que é desde sempre e o será no porvir.
Quando o pensamento termina, entramos em contacto com a morte psicológica sendo a visão daí resultante renascimento e eternidade, podendo então a mente penetrar num mundo que em muito a excede. Inexistindo pensamento, não há tormento, não há medo ou aflição. Observar o sofrimento, o medo ou qualquer problema é fazê-lo cessar, como consequência da cessação do pensamento.



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Quando formulamos juízos enunciamos o que deve ou não ser, quando o que é, é um facto indesmentível e irredutível a qualquer visão limitadora. Sem comparar ou interpretar a observação é inocente e límpida. Ela exclui juízos valorativos ou explicativos, qualquer tipo de escolha.
Se interpretamos um facto este deixa de o ser para se constituir como uma nova realidade.
Olhar as coisas recorrendo mentalmente a comparações, inviabiliza a contemplação.

A observação é pura percepção e exclui qualquer tipo de raciocínio, análise ou dedução lógica. Exclui a “visão” que se estrutura num sistema filosófico, numa crença, em experiências passadas, pressupondo liberdade e inocência, morte e renascimento, bem como acção imediata.
Ver não é formar juízos ou opiniões, analisar, imaginar ou interpretar; ver é observar sem que se recorra ao pensamento destruidor, é galgar as barreiras do espaço-tempo de um modo espontâneo e instantâneo, que nunca se reitera para que o novel possa florir e frutificar em cada momento.
Quando morremos para o passado, começamos sempre de novo, imaculadamente.



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O constante aperfeiçoamento dos sentidos é pressuposto do desenvolvimento da vigilância do cérebro.
Quando não há pensamento e os sentidos estão plenamente actuantes, há beleza, cuja essência íntima não admite contraste.

Precisamos de desenvolver os nossos sentidos. A audição e o tacto como se fossemos cegos, a visão como surdos, o olfacto, o paladar.
Têm de ser desenvolvidos no seu conjunto, como um todo, para poderem penetrar em profundidade o mundo interior e exterior.

Não há métodos ou regras para tal. O desenvolvimento é fruto de uma contínua e cuidada observação e prática.

Sem excitação, melancolia, entusiasmo, numa indiferença contemplativa que não é apatia, os sentidos cumprem rigorosamente a sua função.
Se os sentidos estão plenamente actuantes e o cérebro atingiu a quietude pela consciência de si próprio, a observação é clara e límpida; não deturpa ou distorce a realidade.
Quando se observa instantânea e apaixonadamente, o espaço-tempo entra em derrocada.
      
Em suma, precisamos de um cérebro lúcido, vivo. Para isso concorre a observação com o concomitante desenvolvimento dos sentidos, a percepção não interpretativa do desespero, da angústia, do desejo, do sofrimento.



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Basta-nos ser; ser sem mais.
A mudança que se pretende pressupõe esforço. O esforço é contenda e a contenda padecimento.
Todo o esforço para se ser algo diferente daquilo que se é tem de terminar de forma natural e espontânea, o que ocorre quando se vive no presente e se nega a fantasia e a imaginação.
Ser-se o que se é, não querer ser, é a base da mudança que surge espontaneamente.
O sofrimento é causado pela actividade mental.
Aquilo que é, não é fonte de prazer ou de dor.

É fundamental morrer para o passado. Há os traumas, os recalcamentos, as sublimações, os complexos de inferioridade, os sentimentos de culpa. Há que os escutar sem desesperar até que se desvaneçam ou esmoreçam.
Quando morremos para o conteúdo da memória, para o passado, para os nossos pensamentos, em suma, para o “eu”, somos introduzidos na criação e na renovação, no mistério da morte.
Se de instante a instante morremos para os acontecimentos quotidianos, para o ódio, o ciúme, e outros estados negativos, para o prazer e para o sofrimento, para os problemas que nos afligem, para o que contemplamos, estaremos em contacto directo com a morte.
Com a cessação do pensamento há purificação, alegria, inocência. A morte do velho traz o júbilo do inesperado. Para além da morte está o sempre novo.

Na observação pura e simples do que é, não há lugar para a ambição, para o vir a ser.
O desejo tem a avidez de não se deixar saciar.

A essência do ser é o não-ser, a morte, que por sua vez também é a essência da vida.



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É bom viver sem mais. Não querer nada, não querer ser nada. Ser, sem nada buscar.

“Que difícil ser próprio e não ver senão o visível.”

Nesta sociedade tudo se faz visando um resultado, uma recompensa. Busca-se o sucesso, o prestígio e aniquila-se a compaixão. Ninguém está indiferente às experiências que titula ou de que é objecto. Ninguém entende que a inexistência de posse, seja ela daquilo que for, objecto, pessoa, crença ou ideia, é uma condição especial.

Aspirar à repetição de vivências aprazíveis e voluptuosas é fazer germinar o sofrimento psicológico.
Exigimos constantemente novas experiências, novos prazeres ou a repetição dos passados. Estamos insatisfeitos com a vida que levamos e queremos sempre melhorá-la qualitativa e quantitativamente, ao que alimentamos e desenvolvemos um grande número de anseios. E nessa procura desenfreada de gozo, nesse estar no futuro com expectativas de melhoria, passamos ao seu lado.

Quando agimos na mira de um resultado, de um prémio, da aprovação, do lucro, do prestígio, estamos a estimular o conflito. A própria fantasia também o gera. Sempre que somos algo e desejamos ser outrem ou queremos esforçadamente modificar uma parte do nosso ser, ele nasce.
A criação só existe na liberdade integral, quando se está livre de tudo, até da própria busca dessa liberdade.

Da luta travada pelo ser para vir a ser, da contradição íntima, nasce invariavelmente um problema, que é um desperdício de vitalidade.
Da mortificação para atingir Deus, o Absoluto, a Verdade, nada frutifica. Se o buscares não o encontrarás, se implorares não o acharás. Ele é liberdade absoluta que se manifesta no não condicionamento, na ampla abertura de espírito daquele que apenas é e nada procura ou quer vir a ser. Jorra gratuita e espontaneamente nos pobres em espírito.

O pensamento criou as religiões, os livros sagrados, deus. Este não pode ser buscado nem encontrado.
O Absoluto prescinde do limitado e só nos atingirá quando nos libertarmos das teias do espaço-tempo, que apenas se torna possível com a cessação do pensamento e consequente aniquilação do “eu”.



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Ser, intensamente e com paixão, é experimentar a essência das coisas.
A paixão pressupõe uma mente quieta, atenta e sensível, vigorosamente sensível a tudo o que a rodeia.
É sensibilidade e intensa afeição que não se apega nem tem qualquer motivação particular. É amor que dispensa a reciprocidade.

A beleza está no que é. Na realidade a que não necessitamos de adicionar ou subtrair seja o que for para a tornar mais bela ou menos feia.

Paixão e amor caminham de mãos dadas, ausentes do pensamento.
A acção praticada com amor, gratuitamente, sem outra determinação que não a sua realização, tem uma energia tal, que nos permite e quase impõe a sua conversão numa lei universal.
Só ama quem é livre.
Por isso, o Amor é forte como a Morte.
A morte psicológica é uma experiência fantástica. E o renascer algo de mais fantástico ainda.
Para viver é necessário morrer. No renascer está a paixão, o amor.

A felicidade só existe quando não pensamos nisso. Há uma verdadeira desventura no desejo de ser feliz.
“No dia em que se sentir feliz sem nenhuma razão aparente, no dia em que sentir prazer em tudo e em nada saberá que encontrou a terra da alegria interminável, chamada Reino.”

Uma mente sensível, apaixonada, é a que sendo livre não está condicionada por qualquer objectivo ou finalidade.




Quando a “alma” já não escolhe entregando-se incondicionalmente à vida, quando a sua visão da Realidade é límpida, quando já nada pede e recusa, unificando-se com o Todo, então talvez o Reino dos Céus que está dentro de nós, escondido no nosso interior, se exteriorize tornando-nos Um com o Sem-Nome.





José Maria Alves